2023-05-25

As curiosas ilustrações do "Hobbit" de Ferguson Dewar

Os textos do Senhor dos Anéis e do Hobbit sempre foram zelosamente resguardados de adaptações, tanto em vida do autor quanto depois de sua morte. O próprio J.R.R. Tolkien, e postumamente seu filho Christopher, se encarregaram disso. Assim, não é comum encontrar-se uma adaptação de obra do Legendário tolkieniano feita para uma revista. Uma delas foi feita para a o periódico Princess and Girl, da Fleetway Publications, destinado a meninas adolescentes. O conto do Hobbit foi subdividido em quinze episódios semanais e publicado entre 10 de outubro de 1964 e 16 de janeiro de 1965. O texto foi bastante reduzido pela eliminação de vários trechos. Cada episódio ocupava duas páginas.

As 83 ilustrações para essa adaptação – extremamente originais e às vezes não muito fiéis ao texto – foram realizadas por Ferguson Dewar, especialmente para a série. Foi a primeira vez que uma versão em língua inglesa do Hobbit foi ilustrada por alguém que não fosse o autor.

“Ferguson Dewar” era o pseudônimo de Edwin Peter Dewar, nascido em Edinburgh em 1925. Ele serviu na 2ª Guerra Mundial como membro da Marinha Real, em comboios que acompanhavam naves russas. Foi gravemente ferido em 1945, recebeu baixa como inválido e passou a frequentar a Bradford School of Art, especializando-se em ilustrações e charges. Nas décadas de 1950 e 1960 trabalhou em anúncios de filmes, arte de embalagens e materiais publicitários; também produziu tiras de quadrinhos para diferentes séries na imprensa. Como colaborador da editora Fleetway, foi escolhido para ilustrar a serialização do Hobbit.

Tolkien pôde ver a adaptação e, apesar de a ter autorizado, não se entusiasmou com o resultado. Em uma carta a Joy Hill, funcionária da George Allen & Unwin, editora de suas obras, e que mais tarde se tornou sua secretária, JRRT assim se expressou:

14 de agosto de 1964

Cara Srta. Hill,

Concordo com a serialização de O Hobbit na “Princess”, como foi descrita em sua carta de 13 de agosto, e nas condições propostas. Provavelmente uma crítica dos desenhos não seja útil neste caso, apesar de eu mesmo desejar, pelo menos, que Gandalf fosse menos irrequieto e exagerado nos trajes, e tivesse alguma dignidade. Ele não deveria ser chamado de “mágico”, e sim de “mago”. Creio que se deva chamar a atenção, tanto do Sr. Roberts quanto do artista, para o fato de que em meu texto a forma anãos é usada em toda a parte, mas que isso é somente uma aberração pessoal minha, e para esse fim creio que a forma correta anões possa ser substituída no texto. Chegou à minha atenção o caso de um infeliz professor que corrigiu uma criança por ela usar anãos, mas foi frustrado pela produção de meu livro. Sou totalmente a favor de que seja ensinada a ortografia, e não desejo que a autoridade de um mestre sofra danos por causa das peculiaridades de um professor universitário!

 

As ilustrações de Ferguson Dewar são no mínimo curiosas. Gandalf (que, lembramos, não é um “mágico”) tem sobrancelhas que ultrapassam a aba do chapéu, um detalhe que muitos ilustradores deixaram de respeitar em seus desenhos. Também estão presentes o longo manto cinzento e as botas pretas, o que nos faz pensar o que Tolkien quereria dizer quando o considerou “exagerado nos trajes”. E o que dizer de Bilbo? Seus pés são peludos, sim; e a cabeleira é de fato espessa e crespa, como as que Tolkien atribui aos hobbits no Prólogo do Senhor dos Anéis. O cachimbo, esse parece um tanto exagerado.


Os instrumentos dos anãos na festa inesperada são reproduzidos com exatidão: a harpa de Thorin, as clarinetas de Bifur e Bofur, as flautas de Dori e Ori, o tambor de Bombur. Dwalin e Balin têm violas, e Kili e Fili tocam rabecas. O livro não menciona os instrumentos de Oin e Gloin, mas aqui aparecem como sendo da família dos violinos.


 Alguns personagens perderam seu impacto nos desenhos de Ferguson Dewar. O narigudo Gollum não é muito assustador (exceto talvez pelos pés de sapo), enquanto o Grande Gobelim tem um aspecto quase burguês. Os três Trols parecem mais bonachões do que cruéis. Também ao rei dos elfos falta uma certa dignidade: ele está encolhido em seu trono e tem uma expressão quase tímida.





A casa de Beorn e a Trilha da Montanha devem muito aos desenhos do próprio Tolkien. Também a Cidade-do-lago e seus barcos élficos provêm da ilustração do autor. O dragão Smaug foi claramente inspirado no Jabberwock (“Jaguadarte”, na tradução de Augusto de Campos) que aparece em um poema de Alice Através do Espelho e o Que Encontrou Lá de Lewis Carroll, especialmente na imagem em que se defronta com um Bard saído dos quadrinhos do Príncipe Valente de Hal Foster. Também o Mapa de Thror, apesar de redesenhado por Dewar, mal se distingue do original.




Jabberwock (John Tenniel)

Após quase seis décadas, é interessante ver em que medida o texto de Tolkien estimulou a imaginação do ilustrador que, apesar de ter acompanhado o autor em alguns desenhos, em outros produziu interpretações muito pessoais e peculiares.

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